domingo, 13 de abril de 2008

Na minha infância, no fim da minha rua de piche sob um céu cor de chumbo, havia um grande jardim inalcançável, e os prazeres, que nele poderia ter, povoaram todos meus delírios sonhados a sombra de um pé de romã, estranhamente, um imenso alagado fazia todo aquele aspecto élfico e fantástico, algo bem distante de minha triste pingo gota realidade. A única forma de chegar a tal lugar, era traçar caminho, saltitando feito sapo pelas vitórias-régias que salpicavam o lago, impossível deduzir as agruras, tal qual um monstro medieval ou aquele temor infantil sem forma, estranha presença andando no escuro. Se você já fitou o olhar de um cego, saberá quão cândido era meu brilho pelo paraíso, o jardim era o paraíso, sonhar era ir até essa pintura, e nela, tornei-me romântico condenado a sonhar, o sonha que inebria e não deixa acordar. Eu pingo de gota, banho de chuva, bolinho de chuva beijos ao ar, pra você Aline, que comigo sabe sonhar.

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A planície negra, que foi meu pesadelo constante, não conhecia forma material nem sentimentos lúdicos, esses que os homens de nosso mundo, brincam de desejar, uns aos outros como num jogo de peteca. A ausência de tudo existente na superfície negra, era a resposta direta ao excesso de não vontades e não quereres, enfim, nesse lugar poucas coisas existiam, pois tudo se resumia a contornos fluorescentes e difusos, mas pra mim, elas se reduziam a dois furores: medo e fuga; medo das cores e fuga dos que as habitavam.
Era uma porção de gente maluca, todos muito altos, oportunistas, sempre atrás de uma salvação, uma adrenalina, uma desculpa qualquer para findar o tédio de habitar um pesadelo repetido, eu corria, e perdia o fôlego durante o sono. Dividia uma cama de casal com uma senhora, e por longos anos, senti no bojo todos os cheiros que os velhos exalam, todo cheiro de abandono em que seus pertences se calam, e sempre, além da escuridão, havia o som filho da puta de respiração chiada. Por essa época, no de-lírio de meu pesadelo subterrâneo, costuma pensar que poderia morrer devido à transpiração, todas minhas células convertendo-se em suor, e a transpiração estava diretamente ligada à fuga, se de repente fosse eu um protozoário! os fluordifusos me pegariam e fariam de mim parte de meu próprio pesadelo, e em meu próprio engano seria uma briófita, grudada em cada planície negra com falta de quereres e vontades.

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Eu sou um fantasma, entro em casa, e num volume altíssimo está tocando “take this love i’ve got”, com a potente voz de wilson pickett me arrepio, dou um sorriso, e na cozinha, no canto alemão,dois homens conversam em cochichos, não os reconheço e também não faço questão, são do tipo fortes de queixo proeminente e punho astuto, mantenho distancia; no quarto, meus pais agonizam em sangue, soltando pequenos gemidos entrelaçados a uma respiração muito ofegante, mas pareciam bem, não me viram, ninguém podia me ver, na sala minha irmã está descalça, ela assiste televisão e tem a testa completamente distorcida pela indagação, mas está tranqüila, logo penso “meus pais devem estar numa boa”, no banheiro, entre citoplasmas azuis, o assassino da semana que saiu no jornal, me espera atrás da porta, ele tem uma peixeira, a mesma que usou em meus pais e em sua própria família, mas ele não me vê, ninguém pode me ver. Dou o fora de lá, estou muito, muito entediado, da rua de piche o céu parece refletir o censo comum, nublado e carregado ele quer me engolir, mas também não pode me ver, imagine só, nem deus está me enxergado, o soul realmente me elevou. Acendo um cigarro e percebo que a música continua tocando, me arrepio novamente e sinto uma enorme vontade de tocar fogo, tocar foda-se. Acolho as mãos no bolso, eu estou sozinho e o tempo começa a esfriar, e eu vou simplesmente andar por ai, dar uma boa observada, sentir um pouco o cheiro, passar por tantas ruas que você nem imagina, não vou me preocupar com o sangue rolando, nem com as pessoas más, muito menos com o trabalho a ser feito e com as contas que devo pagar, roupas que devo vestir ou o cabelo que devo cortar, eu estou sozinho e não tenho com o que me preocupar. Take this love i’ve got....take this love i’ve got...take this love i’ve got .
para Aline Luize